O Estado tem que ser do tamanho necessário que corresponda à vontade da sociedade para garantir equidade aos seus
Como um reles contribuinte, sempre me senti afortunadamente excluído das penosas discussões sobre o tamanho e a natureza do Estado, que, ao fim e ao cabo, é apenas o instrumento coletivo que a sociedade criou para gastar em proveito dela própria. A organização do Estado é complexa, os interesses que o subvertem são conhecidos, mas seu sentido é – o ou deveria ser – simples como o enunciado acima. O Estado existe para gastar o que arrecada da sociedade em favor dela.
Como essa premissa, e fugindo do fatalismo marxista, o Estado não está condenado a ser o ‘comitê executivo da burguesia’, embora frequentemente pareça apenas isso. Para ser legítimo, o Estado deve ser o instrumento pelo qual a sociedade corrige as desigualdades de oportunidade. Para isso não pode ser anêmico, ou inchado ou subordinado a lobbies. Ao contrário, o Estado que cumpre sua missão necessita vitalidade, inteligência coletiva, independência e transparência.
A partir daí deixamos o território que é pacífico e adentramos o espaço infestado por promotores de complexidades a vender facilidades.
Uma centenária – e interminável – discussão sobre o tamanho e as funções do Estado coloca patrocinadores do Estado mínimo (Adam Smith, Friedrich Hayek, Milton Friedman) em confronto com seus críticos (John Keynes, John Hawls, Thomas Piketty), erguendo muros inexpugnáveis como se não existissem nuances, tempos distintos e necessidades específicas que condicionam desenhos institucionais particulares. Bangladesh e Suécia têm Estados que só devem ser semelhantes no monopólio da força e no nome.
O Estado brasileiro, com seu patrimonialismo herdado das capitanias hereditárias, carrega o DNA das concessões e favores feitos com chapéu alheio. Isso é um fio condutor de nossa história, paralelo com a desatenção com qualidade do gasto e a originação responsável de receitas.
Mas não significa que o Estado brasileiro seja apenas um grande fracasso. Aí está o SUS para nos mostrar o quanto o Estado é decisivo para os mais pobres. O caso de sucesso do SUS, porém, não compensa os gastos com educação que não melhoram o aprendizado, a iniquidade da Justiça que tarda e custa caríssimo, o descontrole da segurança pública em que policiais se travestem de milicianos justiceiros lado a lado de milicianos travestidos de polícia.
Afinal, a pergunta a ser respondida é: o Estado está cumprindo da melhor maneira seu papel de equalizador das oportunidades colocadas à disposição da sociedade ou está agravando os problemas que deveria resolver?
Se nos fixarmos no essencial, admitindo que o Estado existe para garantir que todos tenham equidade de chances, fica mais simples pensar nas complexidades brasileiras. Nem precisamos ler os clássicos no que dizem a favor ou contra o Estado mínimo. O Estado tem que ser do tamanho necessário e ter a organização que corresponda à vontade da sociedade para garantir equidade aos seus.
Nesse momento, por sorte do destino e uma empurradinha do Centrão, foi resgatada a pauta da reforma administrativa. A iniciativa creditada a parlamentares menos citados trouxe ao parlamento a chance de atualizar a funcionalidade do Estado brasileiro. Consta que a iniciativa de espírito reformista se criou contra a vontade do PT, principal partido da base governista.
Ora, todos sabem que o PT evoluiu – ou involuiu, dependendo de como se olhe a cena – de partido legitimado pelo vínculo com a classe operária para partido do funcionalismo público. Nada contra o funcionalismo público, é imprescindível, exceto nos casos em que opera como uma corporação com interesses próprios e dissociados do interesse público.
J. Rawls fala que os agentes do Estado deveriam vestir o “manto da ignorância” para lidar com os grupos de pressão particulares e se comprometer apenas e exclusivamente com a alocação ótima de recursos que maximizem retornos a favor do conjunto da sociedade.
O corporativismo, em grande medida instalado no PT, escolhe o contrário do preconizado por Rawls e se associa aos interesses mais vocais, dissociados do interesse público, se aninhando sob viéses particulares em detrimento do coletivo mais amplo. Nos habituamos a ver sindicatos médicos que não defendem a saúde, professores que se lixam para a educação, policiais que se desprendem da segurança pública, magistrados que são pôsteres de injustiças, tudo normalizado em capturas obscenas por minorias articuladas para defender seus interesses em detrimento da maioria. A equidade, como régua moral norteadora do esforço de todos por todos, perde força quando o Estado é predado por grupos privados ou corporativos, de fora e de dentro do aparelho estatal.
Aliás, fora é onde vive a maioria da sociedade desassistida e quase sempre desesperançada diante da ostensiva captura do Estado. Por isso, diante da inesperada – e feliz — pauta da reforma administrativa, não cabe pessimismo. É hora de renovar as esperanças de que ela nos aproxime do Estado que arrecada para fazer o bem para quem mais precisa. Chamem os intelectuais de Estado mínimo ou máximo, definam os juristas que a reforma é constitucional ou infraconstitucional, a régua a ser observada deve indicar se a reforma está nos aproximando do objetivo de resgatar o Estado para a sociedade ou é perfunctória nesse sentido.
Estamos reduzindo as capturas corporativas e patrimonialistas ou não tem efeito nessa direção? Estamos liberando recursos hoje mal-empregados? Estamos resgatando o Estado para pô-lo sob o ‘manto da ignorância’ ou estamos apenas mudando o feitio da capitulação aos grupos de pressão?
José Cesar Martins
Sociólogo, investidor em tecnologia; coordenador do coletivo Derrubando Muros.
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico em 26 de setembro de 2023.