A desigualdade racial testemunhou comportamentos opostos na educação básica e na superior nos últimos 15 anos. Enquanto no terciário houve redução das diferenças de acesso e permanência a favor dos negros, graças sobretudo à Lei de Cotas, na básica o rendimento escolar dos brancos melhorou mais que o dos negros, alargando um fosso que já era grande. Decisões governamentais recentes buscam consolidar os acertos e corrigir os erros nas políticas educacionais, mas será preciso fazer ainda mais para superar séculos de racismo.
Na semana passada, o presidente Lula sancionou a lei 14.723, que consolida, expande a aperfeiçoa a Lei de Cotas de 2012. Foram incluídos quilombolas, reduzido o teto de elegibilidade de 1,5 para 1,0 salário mínimo e realizados ajustes para evitar a reprovação injusta de cotistas com notas superiores às de aprovados na ampla concorrência.
Essas mudanças devem consolidar e expandir os resultados da mais exitosa ação afirmativa no ensino superior brasileiro. De acordo com o Censo da Educação Superior de 2022, constatou-se que 55.122 estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas ingressaram por meio do sistema de cotas em instituições federais em 2019. Sem a lei, seriam apenas 19.744, uma disparidade superior a 150%. O Censo e outras pesquisas apontam ainda que cotistas têm taxas maiores de permanência e conclusão, com desempenho acadêmico igual ou superior ao fim do curso.
Como mostram Alysson Portella, Michael França e coautores no recém-lançado livro “Números da discriminação racial”, enquanto a taxa líquida de matrículas no ensino superior dos brancos cresceu menos de 50% entre 2007 e 2020 (de 20,7% para 29,3%), o aumento entre os negros (pretos e pardos) foi maior do que 120% — de 7,4% para 16,8%. Apesar dos avanços, as matrículas de negros retrocederam pela primeira vez em 20 anos em 2021. É preciso monitorar os próximos dados para garantir que os avanços recentes não sejam perdidos.
Por outro lado, ao analisar os dados do ensino fundamental praticamente no mesmo período (2007-2019), os autores revelam um quadro mais preocupante. O problema principal não é de acesso, ainda que remanesçam lacunas a serem superadas e que prejudicam sobretudo os mais pobres, inclusive e principalmente os negros. A questão é que, embora tanto brancos como negros tenham registrado ganhos de aprendizagem, o hiato racial no rendimento escolar aumentou em favor dos brancos.
Isso se evidencia ao comparar a pontuação obtida por estudantes desses grupos nas provas de Língua Portuguesa e Matemática do Sistema de Avaliação da Educação Básica. Entre 2007 e 2019, a diferença entre brancos e pardos aumentou de 5 para 8 pontos em Matemática no 5º ano do fundamental, enquanto a distância entre brancos e pretos saltou de 17 para 27 pontos, tanto em Matemática como em Língua Portuguesa. Essa desigualdade piora à medida que os alunos avançam em sua trajetória escolar, de sorte que o hiato racial se agrava quando são comparadas as notas no 9º ano, um sinal inequívoco de que, ao menos por essa métrica, não temos conseguido implementar uma política educacional antirracista.
Uma alentadora notícia que pode auxiliar a estancar esse quadro veio da Comissão Intergovernamental de Financiamento (CIF), que reúne os três entes da federação para definir a regulação infralegal do Fundeb. Em outubro, a CIF expandiu o financiamento para escolas indígenas, quilombolas e Educação de Jovens e Adultos. Somente mais recursos não serão suficientes para reverter essa tendência, mas podem auxiliar essas escolas e modalidades a lidar com seus desafios, usualmente mais complexos.
Neste dia e mês da consciência negra, temos que celebrar as conquistas, mas sem mascarar a realidade, como fizemos por séculos. Em 2002, no livro “Raça e gênero no sistema de ensino: limites das políticas universalistas na educação”, argumentei que “as diferenças fundamentais entre crianças brancas e negras, no que se refere ao acesso, permanência e aprendizado, requerem políticas de inclusão com preferência racial, políticas ditas de ação afirmativa, que contribuam para romper com o circuito de geração progressiva de desigualdade.” Ações afirmativas implicam tratar desigualmente os desiguais ao longo de todo o ciclo educacional. Apesar de alguns avanços notáveis, após mais de duas décadas o diagnóstico segue válido.
Certamente precisamos hoje de uma educação antirracista, mas sobretudo dependemos que o antirracismo atravesse nossas políticas públicas, sob pena de que discursos, mobilizações ou ações pontuais se mostrem incapazes de derrubar a poderosa engrenagem de geração e perpetuação de desigualdades que têm secularmente caracterizado a sociedade brasileira.
Ricardo Henriques
Superintendente-executivo do Instituto Unibanco; professor associado da Fundação Dom Cabral; integrante do coletivo Derrubando Muros.
Artigo originalmente publicado no O Globo em 20 de novembro de 2023.