Aprender a conviver e cidadania ativa

Aprender a conviver e cidadania ativa

Educação pública é o pilar que sustenta as sociedades mais prósperas e menos desiguais do planeta nas quais todos se unem através de instituições da democracia

As sociedades mais prósperas e menos desiguais do planeta são também aquelas onde há uma cidadania ativa, que se mobiliza por seus direitos, pelo bem-estar comum, e é capaz de resolver seus conflitos de forma civilizada, reforçando os laços que unem todos através de instituições da democracia.

Isso não ocorre por acaso, e um dos pilares que sustentam essa estrutura é a educação pública. E aqui me refiro à educação em seu sentido mais amplo, que engloba também a formação para a cidadania, pois sabemos que a simples expansão da instrução é insuficiente para promover, por exemplo, a tolerância e o respeito mútuo. Basta lembrar que um dos movimentos mais violentos e autoritários do século passado, o nazismo, surgiu na Alemanha, uma das nações mais escolarizadas à época.

Os tempos são outros, mas, conforme argumentei em minha última coluna — ao abordar o tema da educação numa era de transições em distintas áreas — vimos em anos recentes o recrudescimento, no mundo todo, de um populismo reacionário, que busca fragilizar as instituições democráticas. Um movimento em oposição à democracia liberal, contra a modernidade e a concepção de uma sociedade aberta. Não é coincidência que um dos alvos desse movimento seja justamente a escola pública e seus profissionais.

O discurso antidemocrático e de intolerância à diversidade não é novo, mas encontrou campo fértil de disseminação recente nas redes sociais, com seus algoritmos ajustados para se aproveitarem de nossas fraquezas, como a dificuldade de aceitar pontos de vistas contrários e uma propensão a se relacionar apenas com o mesmo grupo social.

Uma agenda que instrumentaliza o ódio a partir de uma falsa e autoritária ideia de “liberdade” e procura instituir um regime contra a diversidade e os direitos das minorias. É nesse ambiente que prosperam fake news e estratégias de desinformação deliberadamente criadas com o objetivo de aprofundar divisões.

A escola é impactada e, ao mesmo tempo, espaço privilegiado para o aprendizado, na prática, do convívio democrático e respeitoso com as diferenças. Para combater a disseminação de discursos de ódio e intolerância, tão ou mais importante quanto ensinar a identificar notícias falsas é desenvolver o pensamento crítico, a empatia, a capacidade argumentativa e o convívio respeitoso.

Antes mesmo das redes sociais, o economista francês Jacques Delors já argumentava, em relatório da Unesco de 1998, que a educação deve utilizar duas vias complementares para buscar essa coesão. Num primeiro nível, a descoberta progressiva do outro.

Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação em projetos comuns, que parece ser um método eficaz para evitar ou resolver conflitos latentes. Portanto, uma contínua disposição a aprender a conviver. Construir confiança é chave nesse processo.

Segundo o cientista político Robert Putnam, quando as pessoas confiam umas nas outras, elas estão mais propensas a participar de atividades cívicas, a se envolver na política e a respeitar as decisões da maioria.

Não esqueçamos que os benefícios dessa abordagem não são apenas civilizatórios, mas também econômicos. O economista Daron Acemoglu, do MIT, e coautores mostram, em artigo de 2019, que a democratização aumenta o PIB per capita dos países em cerca de 20% no longo prazo.

Educação, vale lembrar, é um direito fundamental que potencializa a realização de outros direitos, contribuindo para tornar as sociedades mais prósperas em todos os sentidos.

No contexto latino-americano, temos um desafio adicional, por vivermos em sociedades profundamente desiguais. Estudos do professor Cristián Cox, da universidade Diego Portales, do Chile, mostram também que há baixa convicção plena dos jovens sobre os benefícios da democracia, além de nossos currículos ainda estarem baseados numa visão arcaica de educação cívica como transmissão de conhecimentos, em vez de focados em propiciar oportunidades de práticas e discussões aprofundadas sobre colaboração, cooperação, participação social e representação política. Conforme afirma Cox, “não nascemos democratas, mas aprendemos a ser”.

O artigo 205 de nossa Constituição cita como objetivos da educação o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Por vezes, nos perdemos em discussões estéreis sobre quais desses fins seriam mais relevantes.

No entanto, numa sociedade moderna, o desenvolvimento econômico e social também depende de uma cidadania ativa e plena, que saiba construir consensos e resolver seus conflitos sem violência e com justiça social. Essa é a democracia que almejamos.

Ricardo Henriques
Superintendente-executivo do Instituto Unibanco; professor associado da Fundação Dom Cabral; integrante do coletivo Derrubando Muros.

Artigo originalmente publicado no O Globo em 9 de outubro de 2023.