Como criar uma bioeconomia computacional inclusiva

Como criar uma bioeconomia computacional inclusiva

A Amazônia encerra uma oportunidade de produção de riqueza que pode ser muitas vezes superior a tudo que o Brasil já teve

Quem reconhece a importância de uma agenda propositiva e inadiável para o Brasil, como o Derrubando Muros, grupo que reúne mais de uma centena de especialistas de referência em suas áreas de atuação, parte da observação de que o Brasil é um país com potencialidades incomuns.

Entretanto, temos perdido, uma após outra, as oportunidades de tornar essas potencialidades em vantagens competitivas. Perdemos os grandes ciclos de formação de valor da economia mundial, dos semicondutores ao software, a inteligência artificial e a robótica avançada. Por razões diversas, nos contentamos em surfar os ciclos de commodities como se isso fosse um fim e não um caminho para termos uma economia mais resiliente e uma sociedade mais rica e inclusiva.

A emergência climática em curso está nos trazendo uma nova oportunidade de sermos globalmente relevantes. A Amazônia, que representa 61% de nosso território, encerra uma oportunidade de produção de riqueza que pode ser muitas vezes superior a tudo que o Brasil já teve, sem derrubar uma única árvore, sem poluir um único rio. Pelo contrário, basta que o país cuide de seu patrimônio natural e aplique a ele as modernas tecnologias de biologia computacional e engenharia biológica, para decodificar o vasto conjunto de informações escondido em sua imensa biodiversidade.

A agenda inadiável para Amazônia passa pelo desenvolvimento local das competências e recursos humanos para ciência e tecnologia de ponta. Recentemente foi publicado um pré-estudo de viabilidade do Amazon Institute of Technology (AmIT), com a premissa de que o conhecimento da Amazônia deve ser fundamentado na ciência e na tecnologia direcionadas à inovação para garantir a inclusão socioeconômica no desenvolvimento da própria região.

O desenvolvimento dos recursos humanos necessários e o “capacity building” para decodificar o Livro da Vida Amazônica poderia ser uma das mais importantes missões a longo prazo do AmIT uma vez constituído. Parte desse livro está escrita, uma gota no oceano na verdade, mas que indica existir uma profusão de informações biológicas altamente relevantes que suportariam inovações de última geração.

Em 1859, Charles Darwin foi o primeiro a produzir uma Árvore da Vida evolutiva em seu livro “A Origem das Espécies”. O ‘Livro da Vida’ é a versão moderna desse trabalho o que implica decodificar o DNA de todas as espécies de vida do planeta e os relacionamentos complexos entre elas. Na Amazônia, que hospeda até 20% da biodiversidade do mundo, o ‘Livro da Vida’ está literalmente sendo queimado para abrir espaço para atividades extrativas, gerando um custo gigantesco para a economia global das próximas gerações.

Imagem: divulgação/TV Brasil

Preservar a vida no planeta, no contexto da sexta grande extinção da biodiversidade, não é apenas crítico para nossa própria sobrevivência como espécie, mas também para preservar a vasta inteligência biológica da natureza codificada no ‘Livro da Vida’ ao longo dos últimos 3,5 bilhões de anos de evolução da vida no planeta. A biologia tem se tornado cada vez mais digital, onde processos e componentes são codificados como “uns e zeros” no genoma. Por sua vez, isso significa que, quando os primeiros capítulos deste livro estiverem escritos, um poderoso mecanismo de inovação inspirado na natureza poderá ser desenvolvido através do uso da biologia computacional e da engenharia biológica em grande escala.

O Earth BioGenome Project foi lançado em 2018 por um grupo de cientistas, buscando sequenciar o DNA de 100% da vida complexa conhecida do planeta, na terra e nos oceanos (os eucariotos), nos próximos 10 anos. Até o momento, estimamos que só foram decodificados apenas 0,28% do “Livro da Vida”. Depois da conclusão do Projeto Genoma Humano em 2003, a maciça redução de custos e um conjunto de tecnologias de sequenciamento novas tornaram viáveis o sequenciamento dos 99,72% restantes.

Quando a capacidade total de sequenciamento for atingida, cerca de 1.000-2.000 vezes mais dados serão gerados em comparação com os já produzidos pelo Facebook, Twitter e YouTube juntos. Avanços significativos em inteligência artificial e aprendizado de máquina causal serão necessários para decodificar as causas e os efeitos das inúmeras redes complexas em funcionamento no ‘Livro da Vida’.

A Bioeconomia Computacional terá o potencial de transformar múltiplas indústrias, criando bioindústrias de exportação competitivas com criação de riqueza estimadas em US$ 5 trilhões por ano. Uma nova bioeconomia computacional com características inclusivas foca na prosperidade para todos, começando pelas comunidades tradicionais e indígenas da Amazônia, e poderia ajudar a resolver a maioria dos problemas da humanidade nas áreas de energia limpa, tratamento de água, alimentos, materiais e saúde, em um clima em rápida mudança.

No entanto, como pré-condição crítica para escrever mais rápido a maioria dos capítulos do ‘Livro da Vida’, precisamos ter acesso aos vastos ativos de dados biológicos de nações tropicais biodiversas. Para fazer isso, precisamos ser capazes de operacionalizar totalmente os acordos de Acesso e Repartição Justa de Benefícios do Protocolo de Nagoya da Convenção da Biodiversidade e suas disposições de Sequência de Informação Digital (DSI) usando tecnologias avançadas adequadas para dois objetivos conflitantes em questão.

Por um lado, o ‘Livro da Vida’ deve estar aberto para pesquisas e descobertas por cientistas e inovadores em todo o mundo; do outro, devemos assegurar que a partilha justa e equitativa de benefícios comerciais na invenção seja totalmente rastreável e exequível ao longo da complexa cadeia de valor da informação genômica combinatória típica da biologia computacional e biologia sintética. Essa é a dupla missão do Banco de Códigos da Amazônia, que poderá ser o mecanismo tecnológico para sequenciar e gerenciar o ‘Livro da Vida’ na Amazônia com uma governança ativamente montada para resguardar os direitos de todos os envolvidos.

Isto é uma oportunidade sem par para que o Brasil planeje o desenvolvimento de uma bioeconomia computacional inclusiva nas próximas décadas como uma de suas mais importantes missões de inovação que os próximos governos poderiam definir e apoiar.

Juan Carlos Castilla-Rubio é presidente de SpaceTime Ventures e da KAA Biosciences.

Adalberto Val é ex-diretor do INPA e coordenador do pré-estudo de viabilidade do Amazon Institute of Technology; todos integrantes do Derrubando Muros e colaboradores da publicação Uma Agenda Inadiável.