Compus minha persona com o capitalista e o ativista contra a desigualdade, rimando meritocracia e justiça social
Ao longo de minha vida sempre vi enorme potencial no empreendedorismo como agente de mobilidade social. Basta que a sociedade crie condições para buscar os empreendedores, não na piscina dos 5% mais ricos, mas no grande oceano onde batalha toda a população. Ainda acho que a ideia faz sentido, mas descobri inconsistências que não via antes.
Fui empreendedor chucro, sem formação em negócios e sem berço empresarial. Fiz bicos, fui recenseador do IBGE, estagiário de contabilidade… tive de ir à luta como pude.
Meu primeiro negócio envolvia a produção, distribuição e venda de mel. Eu tinha 19 anos, 120 caixas de abelhas e uma Rural a gasogênio. Foi bem até ir mal. Muitos negócios depois, três se salvaram. Dois existem até hoje, tocados por ex-sócios. O que foi bem não existe mais. Quando o Brasil ruiu em 2014, os americanos que haviam comprado minha empresa saltaram fora.
Essa trajetória, recheada por tombos, me proporcionou a alforria. E me levou à crença de que a meritocracia (resultado do talento e da dedicação) era justa. Eu seria uma prova viva. Por décadas acreditei que todos poderiam ir para o trapézio sem rede embaixo. Errei na extrapolação de que se dedicar e assumir riscos fazem jus à recompensa.
Numa bricolagem pessoal, conectei o empreendedorismo com um destino moral justo. Compus minha persona com o capitalista e o ativista contra a desigualdade, rimando meritocracia e justiça social. O melhor caminho para o combate à obscenidade da desigualdade seria um choque de igualdade de oportunidades. Com isso, conciliei meu sentimento pró-equanimidade com as iniciativas privadas.
Até que resolvi olhar embaixo do capô da igualdade de oportunidades. Conversar com o filósofo João Carlos Brum Torres e ler “A tirania do mérito” (Michael J. Sandel) me fizeram mudar de posição.
Igualdade de oportunidade, para eles, é mais do que oferecer boas escolas a todos. A desigualdade mais impiedosa é a que existe entre famílias alinhadas com o valor da educação para seus filhos e famílias que apenas subsistem.
Outro ponto intransponível para Sandel é a desigualdade nas habilidades pessoais. Alguns poucos indivíduos superarão as barreiras graças a competências inatas. A maioria, não. Mesmo os que têm habilidades superiores não necessariamente terão a confiança socioafetiva para “vencer”.
Conta também o momento histórico. O valor de um ferreiro no século XVIII ou de um pintor na Renascença era maior que o de um jovem com domínio de cálculos complexos que hoje pode escolher onde quer trabalhar.
Ora, se os talentos são tão assimétricos e dependentes de contexto, família, indivíduo e época, o efeito do esforço pessoal soa inconsistente. Há ainda o fator sorte para explicar por que indivíduos com competências e aplicação similares apresentam resultados distintos na loteria do sucesso.
Não me converti ao contrário da meritocracia. Mas descobri que uma vida empreendedora não me autoriza a acreditar que esse é o caminho para todos. Como sempre, a verdade não parece estar de um lado só.
*José Cesar Martins, sociólogo, é investidor em tecnologia e coordenador do Derrubando Muros