Os 50 anos do primeiro choque do petróleo

Os 50 anos do primeiro choque do petróleo

Energias renováveis são parte da sobrevivência do mundo

Em outubro de 1973, a elevação dos preços do petróleo, de cerca de US$ 3 para US$ 12 por barril, transformou radicalmente as condições geopolíticas da economia mundial. Os impactos macroeconômicos, a alta dependência energética dos países importadores e o fortalecimento dos países exportadores deixaram evidente o papel central do petróleo para os governos, empresas e consumidores.

Naquele momento, a preocupação central residia sobre os horizontes de reservas petrolíferas e o pico da oferta de produção. As visões mais pessimistas sobre a disponibilidade de recursos petrolíferos sempre apresentaram em comum a subestimação, sistemática e recorrente, da importância da inovação tecnológica. Contudo, progressivamente, o acesso a soluções tecnológicas mais avançadas ampliou os horizontes de utilização do petróleo e de gás natural em todos os países produtores.

Pelo lado dos exportadores, o primeiro choque reforçou significativamente o poder de mercado e revelou, de forma contundente, o peso da dimensão geopolítica na indústria mundial de petróleo, especialmente da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), criada alguns anos antes em 1960, quando o petróleo já se tornara a principal fonte de energia primária na matriz energética mundial. O choque permitiu um aumento expressivo da renda petrolífera dos produtores e promoveu um novo equilíbrio nas relações econômicas e políticas entre países.

A essa altura, a base técnica do sistema produtivo em todo mundo já era fortemente dependente dos derivados de petróleo, em todas as atividades econômicas, em particular nos setores de transportes e industrial. Os impactos e, principalmente, as reações e respostas de política, explicam a grande mudança na economia mundial. No plano macroeconômico, a recessão, o aumento da inflação devido ao aumento dos custos de energia e os desequilíbrios nas balanças comerciais e de pagamentos interromperam o período conhecido como “Trinta Anos Gloriosos”, marcados por elevadas taxas de crescimento econômico desde o fim da Segunda Grande Guerra.

Assim, as condições de base da indústria petrolífera mundial foram fortemente alteradas. As mudanças na comercialização de petróleo, o aumento das negociações no mercado spot e a criação do mercado futuro, em 1983, são resultados diretos do choque do petróleo. Desde então, a conjugação dos fatores geopolíticos, conflitos armados e mudanças nas estruturas de oferta e demanda contribuem para explicar a volatilidade de preços, traço saliente do mercado petrolífero mundial, com períodos de elevação (como o que ocorre atualmente) ou contrachoques, como ficaram conhecidas as expressivas quedas registradas em1986 e 2014.

Cabe notar que, a partir dos choques do petróleo, os preços mais elevados favoreceram o acesso a jazidas de custos mais elevados, o que progressivamente permitiu ampliar a participação da produção dos países denominados Não Opep (Nopep) e consequentemente reduzir a participação da Opep na oferta mundial de petróleo. Como resultado, as jazidas com estruturas de custos mais altos passaram a ser economicamente viáveis e desde então foram desenvolvidas através de soluções tecnológicas que permitiram importantes ganhos de produtividade. Exemplos disso são o Mar do Norte e as denominadas reservas não-convencionais, especialmente nos EUA, e os recursos localizados no offshore ultra profundo, em particular nas áreas do pré-sal na costa brasileira, que cumprem atualmente um papel importante no incremento e da oferta mundial Nopep.

O caso brasileiro é, sem dúvida, uma ilustração exemplar do sucesso da busca de petróleo offshore como um dos elementos de resposta de política energética para a redução da dependência das importações. Quando ocorre o primeiro choque, o Brasil importava cerca de 85% da oferta doméstica de petróleo. Até então, a Petrobras, criada exatamente vinte anos do primeiro choque em 1953, tivera seus investimentos concentrados na construção do parque de refino nacional. É precisamente a partir dos choques que a empresa acelera os investimentos em exploração e produção na Bacia de Campos, permitindo lograr sucessivos êxitos tecnológicos e produtivos. Além disto, a partir daí o país inicia sua trajetória para se tornar o maior produtor mundial de biocombustíveis, através do Programa Nacional do Álcool.

A quebra do monopólio da Petrobras, via emenda constitucional, e abertura do segmento upstream, decorrente da lei 9478 de1997 (Lei do Petróleo), e os leilões da ANP criaram um regime de incentivos propício à formação de consórcios para a realização de investimentos, possibilitaram a busca por oportunidades e culminaram com a descoberta do pré-sal. Os reservatórios do pré-sal, situados em águas ultra profundas, impuseram um contexto repleto de desafios tecnológicos. É importante ressaltar que a produção do pré-sal no Brasil tem crescido de forma vertiginosa, o que demonstra a adequação dos marcos legais e regulatório após a abertura setorial, bem como a capacidade da Petrobras , das empresas consorciadas, da indústria para-petrolífera e das instituições de pesquisa em cooperar efetivamente para a superação dos desafios listados acima.

Cinquenta anos após o choque de 1973, o atual contexto de transição energética pode encurtar o horizonte do pico de demanda de petróleo e irá certamente pautar, ao longo das próximas décadas, a evolução do mercado internacional, impondo revisões estratégicas das empresas petrolíferas, sejam elas estatais ou privadas.

A meta de descarbonização, dada a urgência por soluções decorrentes da crise climática, parece ser um objetivo primordial, porém indissociável da segurança do abastecimento. Sem sombra de dúvida, todo o esforço de pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica necessita ser, idealmente, canalizado para a luta contra o aquecimento global e a crise climática, seja através de tecnologias de eficiência energética ou através de tecnologias para desenvolver fontes de energia de baixo carbono ou sem carbono. Esse progresso tecnológico em curso requer a mobilização de vultosos recursos financeiros e deveria idealmente também beneficiar o maior número possível de pessoas e reduzir a pobreza energética.

De 1973 a 2023 nosso mundo, em um curto período em termos históricos, conhece realidades muito distintas. É evidente, salutar e necessário o crescimento das energias renováveis na matriz energética mundial. Trata-se, sem exagero, da sobrevivência do mundo como o conhecemos. No entanto, mesmo com a incômoda companhia dos combustíveis fósseis e a corrida por formas de energia com menor emissão de carbono, no mundo real mudanças estruturais na oferta e demanda de energia serão alcançadas médio e longo prazo, pois envolvem transformações nos padrões de consumo e a necessidade de substituição de meios de produção e uso de energia.

David Zylbersztajn

Professor no Instituto de Energia da PUC-Rio; foi diretor geral da ANP; integrante do coletivo Derrubando Muros.

Helder Queiroz

Professor titular do Instituto de Economia da UFRJ; foi diretor da ANP.

Artigo originalmente publicado no Valor Econômico em 11 de outubro de 2023.