O Projeto de Intervenção Urbana da Vila Leopoldina é resultado da reunião de três fatores: uma boa norma, um belo lugar e um proprietário benigno
A gestão das cidades é assunto sério. Num momento em que o ressentimento cresce no meio urbano e as instituições democráticas são questionadas por seu baixo desempenho, combater a desigualdade pela oferta de bens coletivos é fundamental para a própria sobrevivência da democracia. E as cidades, que hoje abrigam 85% da população brasileira, constituem o palco central dessa transformação, tão urgente quanto necessária.
Um dos projetos urbanos mais interessantes de São Paulo começará a ganhar vida nos próximos meses. O Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Vila Leopoldina foi aprovado no início deste mês pela Câmara Municipal após sete anos de discussões e deverá agora ser sancionado pelo prefeito Ricardo Nunes.
O projeto nasce de uma iniciativa do Grupo Votorantim, proprietário de gleba central que compõe o perímetro de intervenção. A partir de modelagem concebida juntamente com o Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem), coproponente do PIU, as propostas de ordenamento da área foram acolhidas pelo Executivo municipal, transformadas num projeto de lei encaminhado e aprovado pela Câmara.
O processo foi longo, trabalhoso e tortuoso. Envolveu discussões intensas com técnicos da Prefeitura. Incontáveis audiências, workshops com moradores do bairro e embates com condomínios que, avessos a uma nova ordem espacial, lutaram contra a construção de apartamentos para os moradores de favelas que hoje moram nas suas vizinhanças.
Mas por que essa oposição nimby (acrônimo em inglês para a expressão not in my backyard – não em meu quintal) desses condomínios de classe média? Simplesmente porque uma parte da comunidade favelada (), que já mora no bairro há mais de cinco décadas, passaria a viver um pouco mais perto, em habitações dignas, num terreno em Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) cedido pela Prefeitura (*).
O impasse foi solucionado com gesto generoso da Votorantim, que, além da disposição de antecipar os recursos para a construção das mais de 800 unidades de habitação social que serão destinadas para o assentamento das famílias da Favelas da Linha e do Nove, decidiu acolher 100% dessas moradias no seu próprio terreno.
Essas idas e vindas do projeto foram cobertas pela imprensa geral e esgarçadas nas redes sociais. Importa, agora, registrar que o projeto é resultado da reunião de três fatores: uma boa norma, um belo lugar e um proprietário benigno.
A boa norma é o PIU, um procedimento regulatório que permite que a população, o governo e forças de mercado dialoguem sobre o destino a ser dado a uma determinada área da cidade. Essa ferramenta de diálogo democrático é recente, foi introduzida pelo Plano Diretor de 2014 e contém elementos procedimentais semelhantes a normas em vigor em outras cidades mundo afora.
O belo lugar é o perímetro do PIU na Vila Leopoldina, entre a Marginal Pinheiros e a Gastão Vidigal, colado ao Parque Villa Lobos. Historicamente uma zona industrial, a região ganhou nova vocação urbana e imobiliária com a transformação produtiva e tecnológica das últimas décadas. Situada a 15 minutos da Faria Lima, próximo de estação da CPTM e de corredores de ônibus, a Vila Leopoldina tem tudo para transformar-se num exemplo de urbanismo e urbanidade.
O bom proprietário é o Grupo Votorantim, que, ao descomissionar dali suas atividades de metalurgia e de mistura de concreto, buscou uma fórmula de desenvolvimento em que, a um só tempo, almeja (1) reproduzir o capital com taxas de retorno adequadas; (2) gerar espaços públicos; (3) criar produtos imobiliários diversos – comerciais, residenciais e corporativos; (4) melhorar a infraestrutura e microacessibilidade; e (5) promover a diversidade e a inclusão sociais.
Não é todo dia que um alinhamento desses fatores acontece. Num momento em que o ressentimento cresce nas cidades e as democracias liberais são questionadas por seu baixo desempenho, o exemplo dos PIUs e parcerias público-privadas (PPPs) em geral, e do PIU Vila Leopoldina em particular, deve ser buscado como fórmula de geração e de distribuição de bens coletivos.
Mitigar a desigualdade e aprimorar a democracia são imperativos do nosso tempo. Melhorar as cidades, morada da grande maioria, constitui uma das rotas centrais deste percurso civilizatório.
(*) A contagem nas Favelas do Nove e da Linha realizada pela prefeitura registrou um total de 853 de famílias. Desse total, menos da metade do total iria para o terreno da Prefeitura, próximo aos condomínios que se opunham ao PIU Vila Leopoldina. Como resultado dos embates, a totalidade dessas unidades será construída na gleba da Votorantim.
(**) Zeis são áreas destinadas a moradias para população de baixa renda. Ou seja, mesmo que o PIU Vila Leopoldina concentre todas as habitações sociais nas áreas privadas da Votorantim, o terreno da Prefeitura inevitavelmente receberá no futuro moradores de baixa renda ali.
*Philip Yang, fundado do Instituto Urbem, senior fellow do CEBRI, é membro do Derrubando Muros