Não incluímos no planejamento parte da população afetada pelas tomadas de decisão
A emergência climática nos desperta para inúmeros desafios coletivos globais que precisam ser enfrentados com urgência. Para isso, devemos buscar novas abordagens para problemas antigos. E isso inclui repensar os mecanismos de transparência, de prestação de contas das tomadas de decisão e de construção de programas e políticas públicas.
O fato de que as políticas públicas devem ser baseadas em dados não é novidade. Mas não só ainda estamos distantes de conseguir que essa seja a regra como ainda não incluímos no planejamento uma parte da população diretamente afetada pelas tomadas de decisão. Hoje, em grande parte, desconsideramos os interesses das crianças e das próximas gerações.
Mas ainda é tempo de mudar. Precisamos construir arranjos que tragam a preocupação com o longo prazo no campo de formulação, tomada de decisão e análise de efetividade das políticas públicas. Além disso, é preciso responsabilizar aqueles que decidam contra o interesse das próximas gerações.
No relatório do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do qual faço parte, apontamos três etapas necessárias para que isso aconteça. A primeira é o reconhecimento normativo dos direitos das gerações futuras, que deve ser o ponto central da declaração final na Cúpula do Futuro, em setembro de 2024; a segunda, o desenho de organizações e processos adequados para o futuro que incluam análises de longo prazo, definição de metas e avaliações de impacto; e, por fim, um sistema que responsabilize todos os atores por seus compromissos com as gerações futuras.
A Nossa Agenda Comum, que apresenta a visão do secretário-geral da ONU para o futuro da cooperação global, faz um alerta: as decisões tomadas hoje vão definir o futuro das próximas gerações. Um exemplo são os impactos da tripla crise planetária –mudanças climáticas, perda de biodiversidade e poluição–, já sentidos no presente, e que irão se tornar ainda mais devastadores no futuro, atingindo o ponto de não retorno se medidas imediatas não forem adotadas.
Vale lembrar que nossa Constituição já garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, além de impor ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A proteção do meio ambiente, portanto, se dá no interesse não apenas das gerações atuais, mas também das que ainda estão por vir.
Felizmente, começamos a ver no mundo decisões com visão de longo prazo. No Equador, um referendo decidiu pela suspensão da exploração de petróleo no parque amazônico Yasuní. Na Dinamarca, o governo chegou a um acordo com uma ampla maioria no Parlamento para eliminar a extração de combustíveis fósseis no país até 2050.
Nos Estados Unidos, o Office of Information and Regulatory Affairs (Oira), que analisa as regulamentações federais, está avaliando uma proposta que muda a forma como as agências federais fazem a análise de custo-benefício das regulamentações propostas. Com a alteração, o governo americano passaria a considerar em suas métricas o benefício para os que ainda não nasceram.
Esse mesmo princípio norteador poderia ser aplicado, por exemplo, no processo de tomada de decisão sobre a exploração do petróleo na Foz do Amazonas. Também deveria ser usado para apoiar a urgência e priorização do Plano de Transformação Ecológica do governo federal. Mas não só. O teste de integridade que verifica se determinada política é à prova do futuro é transversal e deve ser aplicado a toda e qualquer decisão que envolva interesses coletivos. Assegurar que o bem-estar das crianças e das próximas gerações seja garantido por decisões do presente tem de estar no topo das prioridades de qualquer governo.
Ilona Szabó de Carvalho
Presidente do Instituto Igarapé; membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral da ONU; mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia); integrante do coletivo Derrubando Muros.
Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo em 31 de outubro de 2023.