Transição demográfica e pacto intergeracional

Transição demográfica e pacto intergeracional

A forma como adaptaremos nossas políticas públicas poderá resultar no agravamento de desigualdades

Há dez dias, o IBGE divulgou novos números do Censo de 2022, revelando, entre outros pontos, um crescimento de 57% em 12 anos no número de brasileiros com 65 anos ou mais. É mais um dado a confirmar que caminhamos, em velocidade superior à prevista, na direção de uma estrutura demográfica mais envelhecida.

Essa transição, porém, ocorre em ritmos distintos em diferentes grupos populacionais, gerando implicações cruciais para a formulação de políticas públicas.

Ela resulta da interação de vários fatores, como o aumento da expectativa de vida e a queda na taxa de fecundidade. Por exemplo, a expectativa de vida ao nascer passou de 65,6 anos em 1991 para 77,7 anos em 2022, enquanto a fecundidade diminuiu de 6,2 filhos por mulher em 1960 para 1,7 em 2022.

Quais os impactos desse cenário? Um deles é que, conforme a população idosa cresce, há pressões adicionais sobre gastos públicos em saúde e Previdência. Num país ainda com profundas dívidas sociais com a população infantil, jovem e adulta, isso pode agravar a disputa por recursos escassos e afetar a capacidade de financiamento de outras áreas finalísticas, caso da educação.

A forma como adaptaremos nossas políticas públicas poderá resultar também no agravamento de desigualdades. Regiões mais desenvolvidas e brasileiros de maior nível socioeconômico, por exemplo, estão em processo mais adiantado de envelhecimento em comparação a grupos mais vulneráveis. Isso significa que, na base da pirâmide populacional, a concentração de crianças pobres, pretas, pardas, indígenas, do Norte e do Nordeste, tende a ser cada vez maior.

Se, na disputa pelo Orçamento Público, a infância for prejudicada, será esse o perfil dos mais prejudicados.

É importante, portanto, equilibrar as crescentes demandas de saúde e Previdência sem comprometer a educação. E a preocupação aqui não é apenas com as desigualdades.

Para nos adequarmos a uma estrutura populacional mais envelhecida, é fundamental aumentar a produtividade, o que não tem sido fácil, posto que o produto por trabalhador no Brasil cresceu apenas 0,5% ao ano nos últimos 40 anos, segundo Cavalcanti e Fragelli, em artigo de 2022.

Uma das ações com potencial para contribuir com o aumento da produtividade é a expansão com qualidade da Educação Profissional e Tecnológica (EPT). A OCDE estima, em relatório de 2021, que cerca de 0,5% do PIB em gastos adicionais nessa área seriam suficientes para cobrir as necessidades de qualificação e requalificação profissional.

Isso implica uma expansão planejada da EPT a partir de múltiplas trajetórias formativas no ensino médio regular com ofertas alinhadas às demandas dos empregadores, com qualidade certificada, e em sintonia fina com as dinâmicas de reconfiguração do mercado de trabalho, o que jamais será alcançado reduzindo o investimento na formação daqueles que, em algumas décadas, estarão no mercado de trabalho.

Felizmente, a transição demográfica é mais previsível entre outros fenômenos relevantes para o bem-estar social e econômico de um país, como pandemias, conflitos civis e mudanças tecnológicas, por exemplo. A lição de casa mais óbvia aqui é a urgência de nos prepararmos para a nova dinâmica demográfica dentro de uma janela de oportunidade cada vez menor. No último Fórum Econômico Mundial, foram sugeridas cinco ações nessa direção.

A primeira delas é capturar e analisar dados populacionais na elaboração de políticas, pois é preciso saber por que, como e quando as populações estão mudando.

Segundo, garantir condições para que toda gravidez seja planejada e que todo nascimento seja seguro.

Terceiro, planejar as futuras necessidades de infraestrutura de saúde, fortalecendo o sistema de cuidados de longo prazo, para que sejam financeiramente viáveis aos idosos.

Quarto, promover educação ao longo da vida, permitindo que grupos diversos possam se qualificar em todas as fases de suas vidas. Por fim, dar prioridade às políticas de inclusão, reconhecendo que um progresso sustentável a longo prazo não é alcançado quando alguns são deixados para trás.

Em última análise, a transição demográfica no Brasil requer a construção de um pacto intergeracional, que considere as especificidades daqueles mais vulnerabilizados.

É imperativo reconhecer que todos dependem uns dos outros, e é responsabilidade das políticas públicas se adaptarem à nova realidade demográfica, promovendo a igualdade de oportunidades referenciada pela justiça social.

Somente por meio de um compromisso coletivo será possível enfrentar com sucesso os desafios e explorar as oportunidades que a transição demográfica nos oferece.

Ricardo Henriques
Superintendente-executivo do Instituto Unibanco; professor associado da Fundação Dom Cabral; integrante do coletivo Derrubando Muros.

Artigo originalmente publicado no O Globo em 6 de novembro de 2023.