Empreendedorismo para quem?

Empreendedorismo para quem?

Se um negócio só existe porque se apoia na precarização do trabalho, esse modelo está condenado

Empreendedorismo é uma palavra mal compreendida no Brasil. A confusão beneficia quem usa seu significado como uma bandeira ideológica embalada na cantilena meritocrática. Essa apropriação rebaixa debates que poderiam ter função emancipadora se fossem associados à transição do Brasil quase feudal para a democracia liberal. 

Três visões aglutinam as “torcidas”:

empreendedorismo como instrumento de criação de valor e de mobilidade social; 

empreendedorismo como feudo meritocrático das elites; 

empreendedorismo como eufemismo para o trabalho precarizado.

Os fundadores da Endeavor no Brasil não encontraram a palavra no dicionário quanto começaram a atuar no início dos anos 2000. Entramos no terceiro milênio com o empreendedorismo relegado à desimportância de um coadjuvante onde os astros são outros.

Os imigrantes e os que “venciam na vida” eram acolhidos como burgueses endinheirados; daí a terem prestígio social e serem exemplos havia uma distância.

O Brasil autárquico-estatal produzia indivíduos de prestígio através de compadrio ou de concursos públicos para juiz, delegado ou funcionário público. Ser aprovado no Banco do Brasil era ter a vida feita. A estabilidade e os benefícios, inclusive a aposentadoria precoce, eram as prebendas. Na ausência de outros canais de mobilidade, o Estado cevou gerações que dependiam dele. Até hoje a “indústria dos concursos” é uma sombria evidência da distorção brasileira. Batalhar, criar valor e gerar oportunidades para si e para a sociedade não eram virtudes reconhecidas.

Não houve monopólio da direita na manipulação ideológica. Ao herdar a matriz marxista da luta de classes, a esquerda apequenou a agenda de luta por justiça. Para ela, os captores corporativistas e patrimonialistas de um Estado corrompido por privilégios são defensáveis, mas não o empreendedor. Em uma sociedade que premia os encostados, ser batalhador soa como ofensa pessoal. Governos de esquerda condecoram pessoas que nunca saíram de escritórios, mas não celebram o empreendedor que criou empresas que geram riquezas, empregos e impostos.

Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

Em muitos países esses são os “role models” nos quais os mais jovens se espelham. No Brasil, nunca os reconhecemos e, agora, esgotado o modelo autárquico, precisamos de empreendedores para mover a sociedade tanto quanto dependemos de água e energia como indivíduos. A toque de caixa descobrimos que o empreendedorismo tem a função de força motriz para a resolução de problemas e a produção de excedentes.

Um role model “empreendedor” não é um herói. É só a prova de que é possível fazer a diferença pelo agenciamento humano. Não tem a ver apenas com negócios. Ser empreendedor é potencializar o agenciamento humano, tomar riscos para criar uma empresa de transportes, desenvolver um medicamento ou um algoritmo de inteligência artificial para acabar com a fila no SUS.

Empreendedor é quem cria valor sem precisar receber uma ordem ou permissão para isso.

Muito diferente é cravar que só o empreendedor tem valor ou que ele só tem valor se for um voluntarista meritocrático. Esse buraco de agulha é uma apropriação ideológica de quem acha que o bom capitalismo é aquele que serve aos afortunados ao nascer.

Em uma sociedade tão desigual, reduzir o sentido do empreendedorismo aos jovens ricos é condenar 80% da sociedade a não participar do jogo. E a potência do empreendedorismo é justamente o fato de que, com um mínimo de condições universalizadas, todos ganham com o sucesso de alguns.

Como em um peneirão de futebol que recebe mil crianças e seleciona cinco que serão encaminhadas, o mesmo pode acontecer se milhões de jovens nas favelas brasileiras tiverem uma chance justa de serem empreendedores.

Esse entendimento já era verdade antes. Hoje, com a ubiquidade do acesso digital, é uma oportunidade tangível. O mundo digital privilegia o cérebro, reduz custos, diminui distâncias físicas e sociais pelo acesso à informação.

Dessa forma estão abertas as oportunidades para que empreendimentos humanos aconteçam sem necessariamente depender do capital. Não ficou mais fácil ser empreendedor, apenas as barreiras mudaram de natureza.

Com sua população e integridade territorial e política, o Brasil tem todas as condições de dar um salto de desenvolvimento se democratizar o acesso ao empreendedorismo em paralelo ao salto educacional. Só será preciso deixar para trás o ranço das ideologias e abraçar a inovação regulatória, legal e comportamental, além da tecnológica.

Não é o mérito, a priori, como algo metafísico, que define quem será empreendedor de sucesso. É o contrário. É a garantia da igualdade de oportunidades que permite que o mérito emerja. Apoio ao empreendedorismo é a chance de mobilidade social ascendente para todos e não uma loteria em que poucos participam (meritocracia neoliberal) ou um estamento onde os privilégios se cristalizam (corporações estatais).

Esclarecimento: empreendedorismo não equivale a uma sociedade de self-made-men. Mas pode ser a melhor evidência de uma sociedade equânime. É sabido que os empreendedores brasileiros saem da piscina dos privilegiados. Enquanto isso, temos um oceano de gente em cruel exclusão. Se, ao invés de buscar na piscina de 5% da sociedade, abrirmos as comportas do oceano, teremos 20 vezes mais empreendedores empurrando a economia. Uma paisagem radicalmente diferente do cercadinho da Faria Lima.

Talvez apenas 1% ou 2% da população brasileira tenham aptidão para o empreendedorismo. Os demais seguirão outras trajetórias e muitos precisarão do apoio do Estado. A diferença entre uma sociedade com poucos empreendedores e uma em que todos com vocação possam sê-lo será refletida no tamanho da riqueza coletivamente gerada, parte da qual será apropriada pelo Estado para que cuide melhor de todos.

Por fim uma advertência. Pessoas submetidas a condições de trabalho indignas, como os trabalhadores precarizados, não deveriam ser parte de um modelo de negócios, nem isso pode ser aceito como parte inevitável da experiência empreendedora. São só uma expressão cruel da desigualdade. Se um negócio só existe porque se apoia na precarização do trabalho, esse modelo está condenado, seja pelo enquadramento regulatório, seja porque se tornará um pária moral diante do consumidor. Talvez por ambas as razões.

José Cesar (Zeca) Martins, sociólogo, investidor em tecnologia e coordenador do Derrubando Muros